Transcrição traduzida da fala de Paul LeBlanc (EUA)

NOTAS SOBRE O TROTSKISMO NOS ESTADOS UNIDOS

Paul LeBlanc

Comunicação apresentada na Mesa Redonda “Um panorama do trotskismo ao redor do mundo”, no dia 24 de agosto de 2023. Tradução realizada por Icaro Rossignoli.


Antes de iniciar esta breve análise do trotskismo nos Estados Unidos, vou oferecer três elementos de contexto. O estudo vai centrar-se nas deficiências que prejudicam a capacidade do trotskismo estadunidense de estar à altura do seu potencial como força política eficaz. Concluirei com possíveis soluções.
Elemento Contextual #1: Parece que estamos num período de transição. Tal como há três décadas passamos da Era da Guerra Fria para a Era da Globalização, agora parece que entramos numa era de crise, de caos e de revelação. A estrutura e a dinâmica da economia global geram desigualdades, instabilidades e destruição crescentes que põem em jogo o futuro da civilização humana. Esta situação tem sido acompanhada por uma acentuada inclinação para a direita por parte de uma parte significativa da classe dominante, mas também no seio da população em geral – embora seja ferozmente combatida por muitos outros elementos dessa população. O extremismo de direita de Donald Trump é apenas uma manifestação de uma tendência maior e mais profunda. A erosão da qualidade de vida para uma parcela cada vez maior das maiorias trabalhadoras do mundo é acompanhada por um crescente autoritarismo, irracionalidade e violência.
O mais grave de tudo, porém, é uma ameaça iminente à sobrevivência da humanidade: uma economia de mercado voraz, concebida para enriquecer ainda mais às elites incrivelmente ricas, está intimamente ligada à imensa destruição ambiental que envolve o nosso mundo. A catástrofe ambiental em cascata – que já começou – deve ser um foco central para os revolucionários sérios, um assunto ao qual voltaremos na conclusão destas observações.
Elemento Contextual # 2: Tem havido uma erosão profunda e um colapso parcial do movimento operário organizado. O movimento operário dos Estados Unidos persiste, em grande medida, como uma casca burocrática e em grande parte ineficaz comparado ao que já foi. Relacionado com isto está uma desintegração generalizada e o derretimento da esquerda organizada tradicional nos Estados Unidos. Isto leva a uma erosão dramática da fonte organizada de perspectivas políticas práticas, acúmulo de experiência, e quadros e organizadores experientes.
No final do século XX, as duas grandes correntes da esquerda eram essencialmente reformistas, enredadas no Partido Democrata, liberal capitalista. Uma era a cena socialdemocrata, no centro do qual se encontrava o Partido Socialista. A outra era a cena stalinista, cujo núcleo era o Partido Comunista.
Além disso, havia uma série de marxistas independentes, pacifistas de esquerda, trotskistas e aspirantes a trotskistas, uma outrora forte maré de maoístas e ondas sucessivas de uma “nova esquerda” muito ampla, algo nebulosa, mas vibrantemente ativa. Penso que este conjunto multifacetado ganhou coerência e peso em grande parte devido à sua complexa inter-relação com o movimento mais vasto da classe trabalhadora.
Com a transição da Era da Guerra Fria para a Era da Globalização, com o desvanecimento e a erosão da subcultura de esquerda, com base em experiências passadas, e com o envelhecimento e o abandono de quadros e organizadores, as organizações da esquerda tradicional revelaram-se incapazes de se renovar e reconstituir. Elas continuam a existir, na melhor das hipóteses, como remanescentes fragmentários.
Elemento Contextual #3: A atual era de crise, caos e desagregação teve inevitavelmente um impacto radicalizador em novas camadas de jovens que fazem essencialmente parte de uma classe trabalhadora precária, mas em expansão. Isto se refletiu na insurgência do Occupy Wall Street, na insurgência do Black Lives Matter, numa insurgência multifacetada de libertação das mulheres e em novas manifestações de organização sindical e ações de greve. Refletiu-se nas campanhas de Bernie Sanders e noutros esforços eleitorais substanciais para trazer a ideia socialista para o mainstream da política dos EUA, geralmente no contexto do Partido Democrata. Também se refletiu no crescimento substancial dos Socialistas Democráticos da América (DSA) – com um número de membros de 100.000. Embora profundamente influenciado pelo reformismo socialdemocrata, o DSA tem sido um ímã para uma variedade de correntes radicais. Uma dimensão importante dessa radicalização é, no entanto, a relativa ausência de experiência, competências e quadros associados à subcultura de esquerda de épocas anteriores. Esse fato limita por vezes a eficácia e a durabilidade dos esforços atuais.
Chegou o momento de admitir as limitações da minha própria experiência. Nos anos 1960, eu fazia parte da nova esquerda. No início da década de 1970, passei a fazer parte do movimento trotskista. Durante dez anos estive ativo na seção estadunidense da Quarta Internacional, o Socialist Workers’ Party [Partido dos Trabalhadores Socialistas] (SWP) – a essa altura (com 2.000 membros) a maior e mais eficaz organização trotskista, cuja continuidade remontava aos anos 1930, 1920 e antes. Havia outros rompimentos e fragmentos que se identificavam como trotskistas – alguns eram seitas relativamente estéreis, outros eram melhores do que isso, mas tenho menos informações sobre eles. Nos anos 1980, a minha filiação terminou quando se deu uma onda de expulsões no SWP, uma vez que a sua nova direção abandonou o trotskismo numa adaptação extrema ao castrismo. Atualmente, existe como uma pequena seita não trotskista, bastante irrelevante. Após a minha expulsão, adquiri experiência em vários rachas do SWP – brevemente na Socialist Action [Ação Socialista] (hoje apenas um punhado de pessoas); depois, durante vários anos frutíferos e enriquecedores, na modesta Tendência Quarta-Internacionalista (nunca superior a 80 camaradas, que se dissolveu formalmente em 1992); e, finalmente, durante dezesseis anos de experiência bastante problemática, no grupo Solidarity [Solidariedade], que nunca chegou a ter mais de 200 membros. Em 2009, decidi juntar-me àquela que era, na altura, a maior e mais vibrante organização trotskista dos Estados Unidos, a Organização Socialista Internacional (ISO), com mil membros. Permaneci até ao seu colapso em 2019, em grande parte sob o peso das suas próprias contradições. Atualmente, sou um membro relativamente inativo de um dos fragmentos pós-ISO, o Tempest Collective, e também do DSA (para o qual alguns desses fragmentos gravitaram). Continuo a identificar-me com a Quarta Internacional e mantenho laços com o Instituto Internacional de Investigação e Educação (com sede em Amsterdã).
Relembrando: as organizações ainda existentes que mencionei incluem: o ex-trotskista Socialist Workers Party (não mais de 100 membros); Socialist Action (não mais de 50 membros); Solidarity (não mais de 200 membros); e o Tempest Collective (não mais de 100 membros).
Dois outros grupos trotskistas parecem dignos de consideração. Um, com talvez 1000 membros, chama-se Socialist Alternative e é mais conhecido por eleger e reeleger Kshama Sawant para o conselho municipal da cidade de Seattle. Outra parece ser menor, reunida em torno da publicação online Left Voice, identificando-se com uma entidade chamada “Fração Trotskista – Quarta Internacional”, que tem organizações-membros significativas na América Latina. Não tenho conhecimentos suficientes sobre nenhum destes grupos.
Há pelo menos mais dez grupos que se consideram trotskistas, com membros que variam entre 10 e 100. É possível argumentar que alguns deles são mais ponderados e sérios do que outros – mas nenhum deles pode gabar-se de ter qualquer impacto político substancial. Estas incluem: a Tendência Bolchevique, a Liga Comunista dos Trabalhadores Revolucionários (associada à publicação Spark), o Partido Socialista da Liberdade, o Comitê Trotskista Internacional, a Liga pelo Partido Revolucionário, o Organizador Socialista, o grupo Revolução Socialista e a Organização Socialista dos Trabalhadores. Duas entidades que se identificam como “trotskistas” – também com quantidade de membros minúscula – distinguiram-se por um sectarismo particularmente tóxico. Uma é a Liga Espartaquista, que fez um valioso trabalho de arquivo, mas parece ter em grande medida se desintegrado ao fim de seis décadas. O Partido Socialista para a Igualdade [Socialist Equality Party] (outrora conhecido como Liga dos Trabalhadores) está associado a um site interessante (o World Socialist Website [WSWS]) e publicou alguns livros valiosos – especialmente do falecido historiador dissidente soviético Vadim Rogovin – mas também tem pouco para mostrar após sessenta anos de existência.
Uma caraterística debilitante da maior parte destes grupos (partilhada com muitos pretensos grupos “leninistas” de orientação maoísta ou estalinista) é a inclinação de cada um deles de ver a si próprios como a vanguarda revolucionária, ou como o núcleo de uma futura vanguarda revolucionária – como o guardião da verdadeira tradição marxista revolucionária, da política verdadeiramente correta, em torno da qual o futuro partido revolucionário tem de ser construído, se for, de fato, um partido revolucionário.
Isto gera dois resultados problemáticos. Um resultado problemático é que a liderança da organização, e a sua cultura política interna, funcionam para preservar – por todos os meios necessários – o que é considerado a política verdadeiramente correta. Isto, com demasiada frequência, afasta o espírito crítico, a abertura, a criatividade e até a democracia interna que são essenciais para um partido verdadeiramente revolucionário. Outro resultado problemático é que, demasiadas vezes – em nome da pureza revolucionária e para assegurar um partido revolucionário incorrupto no futuro – a “vanguarda” autodeclarada cria barreiras entre si e as organizações que são vistas como politicamente defeituosas, ao mesmo tempo em que se abstém de construir lutas de massas reais e efetivas dos trabalhadores e dos oprimidos.
Para alguns grupos que se consideram trotskistas – nos Estados Unidos, mas também noutros lugares – o foco dos camaradas tem sido, basicamente, desenvolver pensamentos revolucionários e articular “posições” revolucionárias. Isto pode ser feito argumentando (para aqueles que querem ouvir) contra a classe dominante capitalista, ou contra grupos não-revolucionários, ou contra outros grupos que se pretendem revolucionários que têm pensamentos e posições um pouco diferentes. Os camaradas discutem estes assuntos nas reuniões de membros, distribuem o jornal da organização, trabalham em mesas de literatura, organizam fóruns e grupos de estudo. Se for necessário organizar comícios ou manifestações, isso é frequentemente feito através de formações auxiliares controladas pela própria organização revolucionária. Tudo isto se traduz na criação de um pequeno universo sectário próprio.
Há vários anos, o falecido John Molyneux descreveu uma orientação muito mais saudável, preferida pela Socialist Workers Network [Rede dos Trabalhadores Socialistas] da Irlanda: “o envolvimento real com as lutas cotidianas dos trabalhadores nos locais de trabalho, nos sindicatos, nas comunidades e nas campanhas”. Molyneux explicou que “este envolvimento não pode ser apenas ao nível das palavras, através do programa de transição correto, etc. Tem de ser real, cara a cara, no dia a dia”. Ele utilizou uma expressão irlandesa para explicar que “essa interação ‘coloca em ordem’… tanto os dirigentes como os membros. Cria uma pressão contrária à exercida pelo capitalismo e pelos partidos reformistas que se baseiam na passividade da classe trabalhadora”. Mais do que isso, “inibe a mentalidade de seita, dissuade uma liderança arrogante (porque os camaradas de base sentem-se muitas vezes com mais poder para defender a sua posição em questões concretas e imediatas) e ajuda os membros do partido a aprenderem a falar com as pessoas da classe trabalhadora, e não apenas uns com os outros. Dá vida ao lago estagnado da vida da seita”. Esta abordagem parece-me tão aplicável aos Estados Unidos como à Irlanda, mas tal abordagem não tem sido a norma entre as organizações trotskistas estadunidenses no século XXI.
A possibilidade de um movimento de avanço para o socialismo (ou de um deslize para a barbárie), no meu país e em muitos outros, está sendo criada pelo início de uma catástrofe climática em cascata. Para evitar o pior desta calamidade, de acordo com o Painel Internacional das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (IPCC), as emissões globais de carbono devem ser reduzidas para metade até 2030 e para zero até 2050. O capitalismo global gerou esta crise. Alguns dos seus representantes negaram a crise e outros demonstraram uma capacidade de retórica brilhante acompanhada de compromissos falsos incapazes de atingir os objetivos necessários.
Há vários anos, o marxista britânico Alan Thornett enfatizou o que deveria ser senso comum para qualquer marxista sério: “O ambiente é uma questão tão importante para a classe trabalhadora como os salários, as condições de trabalho ou a saúde e segurança. Não se trata de um complemento, de um extra opcional. A realidade inevitável é que, no final, não podemos defender nada, nem ganhar nada, nem construir uma sociedade socialista, num planeta morto.” Os impactos das crescentes catástrofes ambientais trarão sofrimento e morte a milhões de pessoas nas próximas décadas. Este fato tem o potencial de fazer com que massas de pessoas saiam da passividade, da apatia e da complacência.
O fraco movimento trotskista nos Estados Unidos não provou ainda ser capaz de fornecer liderança frente a essa realidade. Não há qualquer esforço para elaborar um programa de transição que aborde a atual catástrofe de uma forma que defenda os interesses da maioria da classe trabalhadora.
Analistas fora do movimento trotskista, como Naomi Klein, apelam a um New Deal Verde que vá nesta direção. “Ao enfrentar a crise climática”, argumenta Klein, “podemos criar centenas de milhões de bons empregos em todo o mundo, investir nas comunidades e nações mais sistematicamente excluídas, garantir cuidados de saúde e infância, e muito mais. O resultado destas transformações seriam economias construídas para proteger e regenerar os sistemas de suporte de vida do planeta e para respeitar e sustentar as pessoas que deles dependem”. Esta abordagem de transição combina múltiplos objetivos: as pessoas antes do lucro, casas e comunidades boas para todos, cuidados de saúde para todos, educação para todos, sistemas de trânsito e de comunicação para todos, alimentos nutritivos para todos, acesso a cultura e recreação para todos, meios de expressão cultural para todos, liberdade genuína e justiça real para todos. Estas reivindicações, que partem das condições atuais e da consciência de camadas cada vez maiores da juventude mundial, conduzem inevitavelmente a uma contestação fundamental do sistema de poder existente. Resta saber se os trotskistas dos Estados Unidos e de outros países serão capazes de responder a esse desafio.